domingo, 21 de janeiro de 2018

Mal agradecido



No corpo de criaturas não mais estranhas da quase em estado de demência mente minha, digo: moram linhas abstratas escuras escritas por um salmista démodé. Tenho, no entanto, o bom ou mau senso de que tentar mudar o mundo mesmo quando a realidade se mostra cruel faz a gente ficar com aspecto de coitadinho. Então, é tentar viver até as banalidades extraordinariamente. Fingir que a felicidade, quem sabe, existe.

Neste espaço pequeno há uma infinidade de pássaros. De alguns nem sei os nomes. Quem aparece em maior quantidade são os pardais. Vêm, desde manhã, se esbaldar na ração dos empesteados cães. Ou no arroz cru que Andreia depois de molhar, deixar o pó escorrer, coloca ao sol para secar.

Juritis. Bem-te-vis. Anus. Pombos. Rolinhas pardas. Rolinhas pedreses. Tico-ticos.  Canários. Pássaros pretos. Maritacas. Cabecinhas-pretas. Sabiás. Pica-paus. Até araras temporãs aparecem. Uma vez vi no alto do abacateiro um jacu. Alguém me disse que jacu não é pássaro, é uma galinha capaz de voar. Senti, ainda, a impressão de ter visto garças, gaivotas, martim-pescador e marrecos d’água neste lote. Trem de causar inveja: ter o Velho Chico praticamente dentro dos muros que rodeiam a casa deste pobre mortal.

Insisto em achar que tais aves surgem de seus cantos de mato por causa da variedade farta de frutos nascidos em meu quintal: abacate, tangerina, umbu, seriguela, goiaba, caju, tamarindo, acerola, manga, mamão, jabuticaba.

Às vezes a solidão ousa me oprimir aqui. Desequilíbrio de não ter a coragem de deixar a cabeça nas nuvens e tirar os sapatos para sentir o chão com maior plenitude.

A natureza a girar em torno de mim como a Terra em torno do sol.

Pecado mortal de sentir infelicidade com tanta superfície bela onde os olhos pousarem.


***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).

Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Arrumar o quarto



Guardo esta noite para a reconciliação. Quantos voltaram a escrever após arrumarem o quarto. Uma noite inteira para olhar um a um os livros caídos. Se eu pudesse, fotografaria esta cascata. Quanto tempo? Me reconciliar com a poeira dos discos, das revistas, desempilhá-los, observá-los um a um em seu abandono, um quarto. Durante, arroz no fogo, meus dedos abandonam o corte da página, corte preciso, resto de cenoura. Geladeira abandonada. Retorno.

Coletar tomates de uma horta seca. Selecionar a audição de um disco, dois mil e oito. Procuro a data, não encontro. Pintura romântica na estampa da camisa que retiro da mala. Repovoar o guarda-roupa. Com o arroz prestes a queimar, deslizo meus dedos pelos cabides soltos, pelo desejo. A página em corte ainda vivo. Observo os dedos, tão longos para esta idade; de quem herdei os dedos, encaro a noite. Troco as cortinas. Agora a luz virá, quando for de vir.

Se eu pudesse pousar um porta-retrato sobre a escrivaninha. Se houvesse moldura possível para hoje, qual canto. O disco se interrompe sozinho, demoro a ouvir. Demoro a ouvir o silêncio do disco, quanto tempo calado, meu deus, quanto tempo. Cenoura em toco. Plantas semimortas. Cuidar da horta, trocar as cortinas, ainda não é hora de ir lá. Quase tropeço. De tanta demora, estou prestes a virar imagem.

Arrumar o quarto e só agora, dois mil e dois, voltar à casa que se foi. Abro uma revista, leio os resultados. Uma frase, uma história contada a partir de uma frase. Milena se suicida porque já não aguenta os arquejos da mãe. Escreve na borda de uma partitura: não aguento os arquejos de minha mãe. Procuro pelo autor da história dentro do quarto. Mas ele está fora, algo me diz que ele está lá. Ainda não é hora. Retiro da mala o pior dos agasalhos.

Se este texto for tentativa de me comunicar com Milena, não digo. Despetalo a rosa azul e procuro na pilha os livros do mar, que avançam em direção à cama. Londres dentro do quarto. Para que eu possa um dia reencontrar os rastros e perseguir o mar através dos livros como quem procura nas mesmas pétalas azuis a rosa de antes. Dois mil e sete. Arrumar o quarto e ir deixando rastros de uma passagem vaga que no entanto acumula louças, e a poeira quem tira?

Deitar sobre a cama, afastar os livros para evitar o corpo a corpo noturno. Após comer uma comida triste. Após o disco reiniciado quantas vezes. Deitar sobre a cama, afastar as canetas, a jangada em miniatura que sem querer, os cabides soltos, afastar o desejo para que um corpo possa caber. Arrumar o quarto, rastros pela casa, casa, uma presença vaga. Retorno. Através um durante.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.

Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)


domingo, 8 de outubro de 2017

Arribação: "Bubuia", Jéssica Martins Costa



bubuia


hoje eu já garanti o café.
desfiz o bordado que fiz ontem,
olhei por alguns minutos
sem surpresa
as plantas que morreram de causa desconhecida
de um dia para o outro.

algumas coisas morrem
e se vão, sem ritual.
algumas coisas são perenes
meu café é perene
meu olho é perene.

o corte sem cuidado,
sem satisfação
do alerta dos sentidos todos.
o sexto, inclusive.

talvez seja eu o próprio método
da tempestade:
salvar-se, sair ilesa, só um sonho cínico.
a cada manhã acordo numa praia nova
(braços, cômodos, uma emoção
até então desconhecida)

carregada de novo
pela onda da noite

só aceito.
lembrar meu nome me basta.



***



Jéssica Martins Costa nasceu em Belo Horizonte, num verão dos trópicos de 1992. Quase ao meio-dia, provavelmente debaixo de um céu de brigadeiro. Anda meio distraída meio muito atenta pelo mundo e, como muitos, ainda não entendeu direito o que está fazendo aqui. Sabe que traduz e escreve poesia. Que formou-se em Letras em algum ponto dos anos 2010 e depois não quis mais saber de escola. Que se reúne (quase) todos os domingos com amigos em um bar, para ler e conversar sobre poesia, e que eles dão a esse encontro o nome de Antissarau. Que nasceu longe do mar por uma adversidade do destino, mas pretende consertar isso em breve. Que é meio bicho do mato. E que sem dúvidas não é muito boa em falar de si mesma. Seu primeiro livro, Bubuia, sairá em novembro pela Editora Patuá.

domingo, 1 de outubro de 2017

Xará



Ser um garoto com ar de gasto desde os primórdios da infância tem lá ao menos uma vantagem: passar despercebido, por exemplo. As pessoas o têm como uma face vista e revista vezes sem conta, mesmo à primeira vista.

Jonas Júnior Silva. O nome da pessoa.

Uma criaturinha que moldava sua personalidade (se é que tinha alguma) ao ritmo da monotonia. Jonas Júnior Silva tivera tataravô, bisavô, avô, pai e tios com o nome de Jonas. Jonas tinha com todos seus parentes uma semelhança significativa. Ele era uma pessoa transparente demais. Tinha cicatrizado à flor da alma (se é que tinha alguma) o receio de guardar segredos. E não é segredo de ninguém que uma pessoa para ser considerada interessante precisa acumular alguns segredos.

Jonas Júnior Silva era chamado pelos amigos de infância de Xará. O epíteto fossilizou, tomou forma de perenidade. Nada de mal. Xará é aquele que tem o mesmo nome. Nenhuma nuance a mais a acrescentar ao livro aberto dessa vida em voga. Uma vida besta, diria Drumonnd em um de seus célebres poemas.

Em referência sonora à palavra célebre, Xará tinha três cães. Cruzamento de pitbull com vira-lata. Os três cães tinham o mesmo nome: Cérebro, que, por sua vez, aludia ao nome mítico de Cérbero, o cão de três cabeças, guardião do portal do inferno.

A esquisitice do menino não parava por aí. Sua coleção de minhocas era outro caso. Ele não deixava as minhocas passarem de sete. Quando tal número era ultrapassado com o surgimento de novos comedores de lama, ele separava os maiores, os aparentemente mais saudáveis, excluía, assim, os mais fracos, que sacrificava aos peixes de um aquário, onde criava pirambebas, pequenos peixes da espécie das piranhas, em ato bastante cerimonial.

– Um projeto de Hidra –, definia, assim, Jonas, a sua coleção de minhocas. Complementava que os bichos também raciocinam, mas que o uso acentuado do lado direito, o criativo, e o do lado esquerdo, o racional, é predicado dos humanos. Ao ouvi-lo assim falar, seus pais achavam que o filho tinha miolos de minhoca.

Jonas, ou Xará, tinha dificuldade de recordar nomes e muita facilidade de esquecê-los. Ele ainda sofria, solitário, uma crise de identidade que insistentemente negava.

Porém, em seu caderno de apontamentos, era comum (o que não era comum em um menino que negava ser incomum o tempo todo?) serem encontradas frases de teor cáustico, recicladas de leituras feitas ao longo de seu tempo, em um caderno de apontamentos. Exemplos:


1 – A existência é um osso antigo que ainda verte sangue virgem nas mãos de um mendigo imerso em ilusão.

2 – Pé de rosa nasce num jardim mal cuidado, onde, de forma furtiva, feto abortado foi enterrado.

3 – Cheiro de peixe podre. Mosca excitada, a ponto de copular com lâmpada apagada. Lâmpada apagada, acossada. Tímpanos zumbem. Verbo crescer em forma de gerúndio: CRESCENDO!

4 – Quem pariu a humanidade foi uma pedra.


            E por aí ia. Tudo documentado, visto e revisto, desde a capa à contracapa.



***


Edson Lopes é poeta, nasceu em Curvelo-MG, mora em Buritizeiro-MG há 16 anos, onde foi professor de Literatura, quando existiu. Atualmente, é professor de Português e autor dos livros Alice no país da mesmice (2000), Historinhas integrais em prosa e verso (2015) e Piolhos (2016), além de ter participado das antologias Combustível, Metal e Poema (2011) e Antalogia Poética (2009).


Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 24 de setembro de 2017

Arribação: “Um grande acordo nacional”, Cecília Donateli



Um grande acordo nacional

É da boa educação
limpar os sapatos
no tapete Welcome

Adentro disjuntores,
santinhos, chicotes,
fotos de família,
banda larga,
frigobares e jornais
com as metas do governo

Ninguém pode acusar o brasileiro
de não ser capaz de fixar
vertigens

O dólar caiu,
toda reforma que vem
vem para o bem
de toda a gente de bem
do Brasil

Trabalha e confia

Deus abençoa
quem chega sorrindo
de cambalhota
à própria guilhotina


***



Cecília Donateli (1989) é capixaba, mineira e carioca em um corpo só. Graduou-se em Direito. Para compensar esse auto-boicote, escreve poemas.

domingo, 6 de agosto de 2017

Factory


1.
Meu Deus, e agora?

Factory é um objeto que tem como responsabilidade criar outro objeto.

Eu vou entrar agora na máquina aqui.

Aqui é o ponto fatal.


2.
Você mataria sua mãe por um milhão?

Eu gosto muito da minha mãe, mas eu não vou lá não.

Minha avó vai se casar sábado.

Tia Selma vai lá em casa só pra comer o tomate.

Lá em casa o povo não vive muito não, na verdade vive, mas morre de diabetes.

Vão enterrar ele que horas?

Quando você diz “arruma aí”, eu não sei o que é arrumar, mãe.

Vocês lembram quando a gente não tinha farinha de trigo?

Deus lhe pague, Marilene.

Tchau, vó.

Vai com Deus, mãe.


3.
E todos odeiam Daniela.

Eu já explodi um rato com um rodo.

Meu colega compra um cachorro e bota o nome dele de Latrocínio.

Traumatismo craniano na hora.

E eu não tenho nenhum dom, cara.

Não desespera.

Tem que sofrer pra purificar.


4.
Douglas, favor, comparecer à linha de frente.

Eu assino como eu?

O que me mata é trabalhar sábado.

Descansar agora, como se dona de casa descansasse.

Imagina você ir de limusine pro serviço.

Cê acha que eu vou advogar pra pobre, pra peão?

Mas eles nunca vão juntar uma equipe boa, paga pouco, exige muito e trata garçom que nem cachorro.

Que que tem trabalhar em zona, é um serviço digno.

Eu gostaria de poder ter tudo.


5.
O invisível a gente não consegue ver.

Eu faço arroz porque quero comer.

Se você não descer do ônibus, você vai ficar dentro do ônibus.


6.
Cada doido, cada doido, eu acho que deve ter faculdade de doido.

Quando você acha uma pessoa bonita, você stalkeia ela, fi.

Eu vou é pedir o impeachment dele da minha vida.

Este sol é minha kriptonita.

Aí eu falei, putz grila, a mulher jogou passas no meu creme.

Batata pesa, né?

Vou arranjar uma namorada no final do ano, acho que merece.

Então toma um bicarbonato, toma um banho, faz alguma coisa, uai.

Quem vai fazer a limonada hoje?

Passou quando eu tava pagando a passagem.


7.
É muito chão, né?

Quem tem limite é fronteira.

Ai, que bom que você me entendeu.



***



Douglas de Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.



Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)

domingo, 25 de junho de 2017

Arribação

Seguindo o caminho aberto no ano passado, meio de ano é tempo de migração. Tempo de peixe se mover, de artista se mostrar. Envie sua produção artística pra gente!

E releia aqui o que já foi publicado.



(arte de divulgação: Vinícius Ribeiro)